Cultura

Como Sérgio Camargo afetou a Fundação Palmares

Sérgio Camargo é um representante 'averso' a muitas questões do movimento negro.

Publicado: | Atualizado em 30/08/2021 16:08


Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares
Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares

Em um cenário da redemocratização do país, em 1988, quando foi escrito na Constituição a prática do racismo como sendo um crime inafiançável e imprescritível, além do reconhecimento das terras dos remanescentes de quilombos, um sonho da comunidade negra era concretizado: a criação da primeira instituição do Estado a tratar da questão racial, a “Fundação Palmares”.

O órgão público foi idealizado como um meio de tratar sobre questões raciais presentes no cotidiano, tendo como missão central o combate ao racismo, assim como a defesa da igualdade racial, “a promoção e a preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”.

Desde a sua origem, a Fundação Cultural Palmares (FCP) passou a liderar debates que envolviam questões raciais no campo da cultura e discutiam as políticas públicas para a redefinição do papel do Estado brasileiro na luta contra o racismo. De fato, a instituição foi protagonista de uma história de muitas conquistas.

Com 33 anos de dedicação, a Fundação tem uma jornada marcada pela promoção de uma política cultural igualitária e inclusiva, com a finalidade de valorizar a história e as manifestações culturais negras brasileiras, visando a preservação de seus valores sociais e econômicos, bem como o apoio de pesquisas e estudos relativos aos povos negros e a inclusão dos afro-brasileiros no processo de desenvolvimento.

A FCP sempre teve como missão a preservação e a manutenção das comunidades quilombolas, sendo responsável por emitir certidões de reconhecimento para comunidades que comprovaram e se autodeclararam remanescentes de escravos, as quais após serem emitidas pela instituição, passavam por um processo para titulação da terra, que seguia ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pelo levantamento territorial e os estudos antropológicos para a correta delimitação e demarcação da área a ser titulada.

Diante disso, muitas delas foram certificadas, possibilitando assim o acesso de milhares de excluídos aos bens e serviços públicos, como a garantia da posse da terra e o acesso a serviços de saúde, educação e saneamento, além do reconhecimento do direito à cidadania.

A Fundação Palmares também sempre procurou o diálogo com as comunidades negras da América Latina, além de intensificar ações junto aos países africanos, em particular os de língua portuguesa, na busca de fortalecer suas raízes comuns. Muitos projetos foram realizados em escolas, por exemplo, a fim de tratar da influência da África no Brasil, levando a cultura afro-brasileira às escolas, o incentivo à educação, à integração social e às atividades culturais nas comunidades, às visitas ao Parque Memorial Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, entre outros.

O Parque Memorial Quilombo dos Palmares, inclusive, foi gerido pela Fundação. A Serra da Barriga, tombada pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1985, é uma área de 27,92 Km², que abrigou nos anos 1600, o Quilombo dos Palmares. Esse importante legado para a população negra brasileira foi também reconhecido como Patrimônio Cultural do MERCOSUL em 2017.

Durante todo o ano, a Fundação promovia, em parceria com o governo municipal de União dos Palmares, ações com o objetivo de incentivar as visitações ao Parque, fomentando a valorização da cultura afro-brasileira. O dia 20 de Novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, em especial, é a data com a maior visitação pública devido às celebrações em memória dos legados negros.

Na contramão das pautas raciais

Em 2018, o jornalista Sérgio Camargo foi indicado pelo presidente Bolsonaro à presidência da Fundação. Um representante ‘averso’ a muitas das pautas raciais defendidas pelos presidentes antecessores da instituição, e que chegou a ter a sua nomeação suspensa. No entanto, em meio às manifestações contrárias de ativistas, intelectuais, artistas e integrantes da população negra – por conta de suas afirmações e ações polêmicas -, Camargo ainda assim assumiu o cargo em 2019.

É válido destacar que Sérgio é filho do escritor, poeta e intelectual empenhado na luta negra, Oswaldo de Camargo. No entanto, ao contrário do pai, o presidente da fundação se define como “negro de direita, antivitimista, inimigo do politicamente correto”.

“Não existe racismo estrutural no Brasil”

Algumas das declarações polêmicas do novo presidente da Fundação foram as de que “não existe racismo estrutural no Brasil” e que o movimento negro é uma “escória maldita”. Além disso, ele chegou a atacar um dos maiores símbolos da comunidade negra, o Zumbi dos Palmares, declarando que ele escravizava pretos. O representante ainda criticou o Dia da Consciência Negra e anunciou que a instituição não daria apoio algum a data comemorativa.

“Não tenho que admirar Zumbi dos Palmares, que pra mim era um filho da puta que escravizava pretos. Não tenho que apoiar Dia da Consciência Negra. Aqui não vai ter, zero – aqui vai ser zero pra [Dia da] Consciência Negra. Quando eu cheguei aqui, tinha eventos até no Amapá, tinha show de pagode com dinheiro da Consciência Negra. Aí, tem que mandar um cara lá, pra viajar, se hospedar, pra fiscalizar… Que palhaçada é essa?”, disse Camargo em um áudio vazado de uma reunião de abril de 2020.

Com a declaração vazada em uma gravação ilegal, a assessoria de imprensa da Fundação Palmares enviou uma nota na qual Camargo “reitera que a Fundação, em sintonia com o Governo Federal, está sob um novo modelo de comando, este mais eficiente, transparente, voltado para a população e não apenas para determinados grupos que, ao se autointitularem representantes de toda a população negra, histórica e deliberadamente se beneficiaram do dinheiro público”.

Cortes de nomes de personalidades negras da lista de homenagem

Camargo também cortou 29 nomes de personalidades negras da lista de homenagens da entidade. Gilberto Gil, Elza Soares, Conceição Evaristo, Marina Silva, Milton Nascimento e Martinho da Vila foram alguns dos excluídos.

De acordo com a portaria publicada no Diário Oficial do órgão, em Novembro de 2020, a Fundação passa a conferir somente homenagens póstumas. Segundo o presidente da Fundação Palmares, foi feita “a exclusão de todos que estão vivos”, e que, a partir de agora, “vamos valorizar quem merece”.

Ausência dos processos de titulação dos quilombos

Desde que Camargo assumiu o cargo, os processos de titulação dos quilombos foram suspensos. O processo de conceder posse da terra aos descendentes de quilombolas têm início com o reconhecimento da fundação e depois segue para o processo legal conduzido pelo Incra. No governo Bolsonaro, a titulação praticamente parou. Sendo que a instituição foi criada para defender, em especial, os territórios quilombolas a partir de diretrizes da Constituição Federal de 1988.

Reforma do acervo de livros

Recentemente, no dia 11 de junho, a Fundação Palmares resolveu banir mais de 5.000 obras do seu acervo. Sérgio Camargo alega que muitas obras que o compõem são pautadas na “sexualização de crianças”, “bandidolatria” e no “material de estudo das revoluções marxistas”, aversoe que apenas 5% dos 9 mil títulos de seu acervo “cumprem a missão institucional” do órgão.

“Todas as pessoas de bem ficarão chocadas ao descobrir que uma Instituição mantida com o dinheiro dos impostos, sob o pretexto de defender o negro, abriga, protege e louva um conjunto de obras pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha”, diz um trecho do relatório intitulado “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista”.

Em um post publicado nesta quarta-feira, no Twitter, Sérgio Camargo disse: “A única raridade é a quantidade absurda de obras desviantes (bandidagem marxista, perversão da infância, bizzarias…). Tudo será doado; são livros que nada têm a ver com a missão institucional da Palmares. Cursos de humanas das federais são o lugar certo. É tudo a cara deles!”

Tal decisão provocou o repúdio Conselho Federal de Biblioteconomia que alega que o documento publicado pela Fundação tem critérios pessoais e não se caracteriza como uma política de desenvolvimento, o que pode trazer prejuízos ao patrimônio bibliográfico do país.

“O Conselho Federal de Biblioteconomia repudia a decisão da Fundação Palmares de eliminar parte de seu acervo bibliográfico, ignorando, para isso, os critérios técnicos e científicos da Biblioteconomia e dos princípios que regem a administração pública […] Ao pretender justificar a eliminação do acervo construído pelas gestões anteriores valendo-se de uma linguagem depreciativa e infundada, a Fundação Palmares expõe a ingerência ideológica numa atividade que deveria primar pela técnica”, disse o conselho em nota.


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